quarta-feira, 15 de maio de 2024

Uma odisseia de loucura e mitologia

 


Há diversos caminhos para mergulhar o público em uma experiência profunda e envolvente, e um dos mais eficazes reside na fusão entre forma e conteúdo. Nesse sentido, o diretor norte-americano Robert Neil Eggers tem demonstrado imensa habilidade criativa. O filme O Farol (2019) é uma porta de entrada para uma época passada de inúmeros espaços. Em vez de depender de truques cansativos, ele prioriza encantar o público por meio de uma narrativa envolvente, atuações excepcionais e design diferenciado. Transporta-nos não só para a década de 1890, cenário da história, mas também para os primeiros anos do próprio cinema, quando serviu como canal para a experiência partilhada de imaginação e sonhos. 

A essência do filme é envolta em um fascínio enigmático. Inicialmente, o espectador só tem conhecimento de que dois marinheiros, o experiente Thomas Wake, interpretado por Willem Dafoe, e o jovem enigmático Ephraim Winslow, encarnado por Robert Pattinson, são despachados para uma ilha deserta para cuidar da manutenção de um farol. A partir desse ponto, o filme cria um sentimento de claustrofobia, preparando o terreno para o surgimento dos instintos primordiais dos personagens. Não demora muito para que o forte contraste entre suas posições, a solidão avassaladora e a natureza monótona de seus deveres se infiltrem em sua psique. Assim, fica evidente que o local serve como terreno fértil para o florescimento das facetas mais sombrias do comportamento humano. A maior parte do filme desenrola-se na complexa interação entre esses dois indivíduos. Winslow se vê sobrecarregado com uma enorme quantidade de responsabilidades, enquanto seu mentor dorme durante o dia e se retira para os limites da torre do farol durante a noite.

A dupla está isolada e fadada a lidar com seus demônios interiores. Escapar dessa situação é inútil, pois ambos estão cercados por mares tempestuosos, clima severo e rochas traiçoeiras. Ephraim, que permanece calado sobre seu passado e todos os outros assuntos, se esforça para manter uma postura neutra, mas gradualmente se vê envolvido no conflito crescente. Thomas, o guardião experiente, estabelece seu domínio atacando os sentidos: ele contamina o penico aninhado entre suas camas estreitas, contamina a residência com sua flatulência nociva, prepara comidas nojentas, coage seu subordinado a consumir álcool e tagarela incessantemente. Apesar de serem completamente estranhos, as sementes de uma luta por poder são plantadas entre os dois homens. 

Em sua busca incessante, o diretor Robert Eggers não poupa esforços na criação de um filme que é sórdido, horripilante e cacofônico, capturando a atenção ao traçar o caminho desses dois homens solitários em um espaço que gradualmente os leva à loucura. Esse ambiente nostálgico é elaborado por meio da cinematografia em preto e branco, alternando entre uma clareza nítida e uma nebulosidade perturbadora. No entanto, a sua verdadeira potência repousa na capacidade de Robert Eggers de conjurar atmosferas enigmáticas e desestabilizadoras a partir de elementos intangíveis. Nesse sentido, a escolha da lente e o processo de desenvolvimento contribuem para a experiência imersiva do filme, onde o público é envolvido por uma sensação de perigo iminente e pela presença avassaladora do mal na ilha isolada. Aliás, Eggers leva tempo para desenrolar a história, permitindo que o espectador experimente a mesma sensação de frustração que o jovem Ephraim Winslow. As tarefas, as condições desafiadoras, a rotina monótona e as idiossincrasias do veterano contribuem. À medida que o conflito se intensifica, segredos começam a ser escondidos entre os dois.

Muito material é fornecido para os atores desenvolverem. Inspirados em documentos históricos, os diálogos são escritos em inglês antigo, capturando a linguagem dos marinheiros e acrescentando um toque encantador à produção, enquanto alusões literárias ao cenário da ilha e à relação do indivíduo com o farol e a vida isolada — derivadas das obras de Herman Melville e Robert Louis Stevenson — enriquecem ainda mais o filme. O texto serve como força orientadora, abrangendo uma ampla gama de tons ao longo da obra, sejam os monólogos ameaçadores de Wake, a rebelião de Winslow ou a mistura peculiar de humor que permeia muitas conversas. O Farol se destaca por retratar os aspectos desagradáveis ​​das relações humanas quando confrontados com circunstâncias extraordinárias. No entanto, isso não nega a existência de um elemento sobrenatural.

Para mergulhar no simbolismo e nas alusões mitológicas presentes no filme, é crucial compreender que a obra explora a solidão e seus efeitos. Esse estado na narrativa significa uma desconexão de si que leva ao desenvolvimento de uma mentalidade perturbada e primitiva. A verdadeira natureza das visões de Thomas e Ephraim permanece incerta, pois pode ser mera alucinação. No entanto, o isolamento amplifica os conflitos e a desintegração do domínio da realidade.

O Farol tem uma qualidade extraordinária que está longe de ser comum. Evocando uma sensação intemporal de ameaça, a mitologia entrelaça-se às ações práticas, como exemplificado pela árdua subida e descida da imponente escadaria do farol, pela natureza enigmática da luz e pela ligação simbólica entre gaivotas e divindades antigas. Além disso, explora mudanças inexplicáveis ​​no tempo e na perspectiva, confundindo as fronteiras entre a realidade e o sobrenatural. Aqui, a tempestade ocupa o centro do palco, mostrando a jornada de uma normalidade sombria até o declínio físico e mental dos faroleiros. Curiosamente, o ambiente também manipula a percepção dos eventos pelo espectador. Em meio a conflitos internos, há uma presença constante que macula o frágil cotidiano. Essa força assombrosa permeia a ilha, infiltrando-se principalmente nos sonhos de Winslow. 

A obra é recheada de referências artísticas. Eggers desenvolve a malevolência por meio de imagens enigmáticas, restos mortais em decomposição e alusões artísticas, como a pintura Hipnose, de Sascha Schneider. Ainda que esses elementos contribuam para a estética surreal do filme, o que realmente diferencia O Farol é a sua essência como narrativa de terror cósmico. Este gênero literário, popularizado por H. P. Lovecraft e Robert W. Chambers, é caracterizado por intenso suspense e ameaças inimagináveis ​​que levam qualquer um às profundezas da insanidade. Aliás, o autor H.P. Lovecraft justapôs a insignificância do homem à grandeza das incontroláveis ​​forças celestes, terrestres e aquáticas, levando a humanidade à loucura quando essas forças são encontradas. Essa ideia serve de catalisadora para o desenvolvimento do enredo e dos personagens, apoiado visual e tematicamente pelas obras do escritor americano. É através dessa lente que fica nítida a transformação dos indivíduos isolados — um sendo humilhado enquanto o outro desempenha o papel de humilhador. Dia a dia, a câmera explora meticulosamente até as atividades mais mundanas, transformando-as em atos de martírio.

Tanto os personagens quanto o público ficam imersos neste complexo jogo, vivenciando uma jornada guiada pela loucura. O Farol regressa ao primitivismo, e suas razões são de natureza mística, não sociológicas. Poder-se-ia interpretar isso como a libertação da nossa essência supostamente domesticada, já não vinculada às construções sociais, mas antes impulsionada pela sua ausência. Nesse sentido, ao longo desse processo, fluidos humanos, gases, gritos e agressões físicas ocupam o centro das atenções, substituindo a fachada da civilização por manifestações primitivas. Enquanto a trilha sonora assustadora de Mark Korven atua como presença etérea, intensificando as cenas, os sons do vento, das gaivotas e do mar cada vez mais turbulento se misturam à buzina estridente e a maquinaria do farol, criando um forte contraste entre a luz intensa e a escuridão envolvente. 

Na cena culminante, Thomas direciona sua raiva para Winslow, desencadeando uma maldição que traz à tona o poder dos sete mares e até convoca o próprio Poseidon. Isso se torna realidade quando os dois faroleiros se encontram num conflito feroz. Thomas passa por transformações, e muitos o percebem como Proteus, filho de Poseidon, conhecido na mitologia por sua natureza violenta e imprevisível. Essa representação captura a essência do filme, enquanto Thomas e Ephraim enlouquecem. Com o passar do tempo, suas ações tornam-se cada vez mais inesperadas e mortais. Assim, não é exagero pensar O Farol como uma alegoria profunda que explora a perda de controle e a deterioração da humanidade pelas lentes da mitologia grega.

Outro aspecto a ser explorado na narrativa é o significado do farol, que estará para sempre associado a algo parcialmente abstrato, enredado numa relação tumultuada repleta de conflitos, paranoia, desejos e violência, tudo em uma atmosfera que acena à loucura. Para muitos, serve como origem da vida na ilha, pois é onde Thomas mantém o controle sobre todas as criaturas. Isso explica por que Winslow é constantemente proibido de se aproximar do farol. Por outro lado, podemos pensar uma interpretação psicanalítica, vendo o farol como representação da consciência absoluta. Dadas as evidências que sugerem que Thomas e Winslow são a mesma pessoa, o farol poderia simbolizar a destruição das ilusões. Quando Winslow finalmente consegue acesso ao farol, ele é consumido por sua luz ofuscante. O estado mental que o farol oferece é avassalador para o protagonista, que declina numa profunda perda de si.

Os momentos mais encantadores do filme ocorrem durante as trocas dinâmicas entre os dois atores, tornando as interpretações um verdadeiro deleite. Pattinson e Dafoe mergulham totalmente em seus papéis, abraçando a montanha-russa emocional da história. Seja em um jantar à luz de velas, onde Wake revela o declínio do protagonista à loucura, ou em uma conversa sobre como sair de uma situação difícil, suas atuações oscilam entre momentos de intensidade silenciosa e talento dramático, resultando em visões sublimes. Pattinson transmite tons sutis de malevolência por meio de seu olhar, explosões emocionais em suas interações com seu companheiro mais velho. Percebe-se que ele tem um personagem mais desafiador, que o exige que permaneça tímido e silencioso diante da loucura invasora. Willem Dafoe, por outro lado, age como se estivesse revivendo algo, incorporando uma persona que oscila entre a submissão tranquila e a carranca de alguém sobrecarregado com conhecimentos proibidos, sem vontade de divulgar qualquer informação. Sua transformação se desenrola pontuada por comportamentos explosivos. Ele tem uma infinidade de histórias encantadoras, mas suas atitudes em relação ao novo zelador estão longe de ser amigável. Neste lugar desolado, Dafoe assume o papel de guia, um homem mais velho que parece exercer controle sobre todos os aspectos do ambiente, evitando e provocando o seu companheiro mais jovem. 

Estas referências refinadas contribuem, sem dúvida, para a qualidade geral do filme, que leva o espectador a uma jornada complexa e desafiadora, repleta de símbolos e metáforas que podem ser difíceis de compreender à primeira vista. No entanto, à medida que nos aprofundamos na trama e tentamos desvendar alguns enigmas, a obra nos encanta.

Os irmãos Eggers fazem com que a narrativa do filme assuma gradualmente uma perspectiva mais surreal e fantástica. Não é de hoje que ignoramos que a malevolência também pode residir na iluminação. Nesse sentido, encontrar respostas é tarefa difícil, pois elas são escassas e fornecidas por narradores sem credibilidade. Aqui é revelado, num outro estrato de intenções, que até mesmo os iluminados, quer desejem ou não, podem evocar uma série de horrores. É por isso que a noção de proteção e orientação que simbolicamente conferimos a um farol está abalada na obra.

No final, não conseguimos concretizar a elipse que o filme nos enreda, pois permanece intacta a sensação de horror de alguém que ousou zombar de uma força maior do que ele mesmo. O mito de Prometeu e o castigo sofrido por Winslow nos dão boas perspectivas de leitura, já que ambos enfrentaram consequências por mergulharem em reinos proibidos. Winslow sofre uma queda escadaria abaixo, e seu corpo se torna alvo de gaivotas. Apesar das várias interpretações, o verdadeiro significado do filme permanece indefinido — e essa é a sua maior força. 

Sem dúvida, Robert Eggers criou uma obra-prima que sempre nos convida a novas interpretações. Cada vez que assistimos, surge algum detalhe que se soma a essa riqueza audiovisual raramente vista no reino do terror. Adaptar esse gênero não é tarefa fácil, e é por isso que a equipe de produção merece elogios por elaborar uma história cheia de enigma e suspense, com uma cadência singular que culmina em uma conclusão inexplicável.


segunda-feira, 13 de maio de 2024

Unindo a emoção e a razão num incrível amálgama de ­alquimista


[...] bestas paridas de um mesmíssimo ventre imundo, éramos todos portadores das mais escrotas contradições.


Narrado em primeira pessoa, Um copo de cólera (1978), de Raduan Nassar (1935-), deflagra a vida cotidiana de um casal, oferecendo vislumbres da dinâmica comum, porém complexa, de seu relacionamento. A obra mergulha nos pensamentos, nas impressões e nas emoções do protagonista, pontuando uma noite apaixonada de amor – descrita com ricos detalhes – e a rotina matinal do casal – especificamente o café da manhã.

A narrativa abre focando na conexão emocional e sexual entre o narrador e a sua companheira. Por meio de descrições, o leitor tem um panorama da vida e da rotina do protagonista, apesar dos acontecimentos da história se desenrolarem em poucos dias. Inquieto e intenso, cada capítulo tem um único parágrafo, marcado por muitas vírgulas e um ponto final. Ainda que isso possa soar estranho, acrescenta um senso de urgência e intensidade à narrativa, preparando o cenário para os momentos culminantes da obra.


[...] atrelado à cólera – eu cavalo só precisava naquele instante dum tiro de partida.


O dia avança normalmente até chegar ao capítulo “Esporro” – ápice da trama, tiro de partida. Desencadeado por um incidente trivial, que se transforma em uma explosão de raiva, um cálice de ódio, desenvolve-se um confronto verbal, fervoroso e combativo entre os dois. No entanto, é fundamental ressaltar que o que acontece aqui não se trata de uma mera altercação entre casais. A forma como se desenrolam as trocas de provocações e de insultos entre o casal é eloquente, evocando uma sensação de orgasmo por meio de um texto arquitetado em fluxo musical. O domínio da linguagem e a maneira como as ideias são expressas são a verdadeira tônica da narrativa. A habilidade lexical de Raduan Nassar dimensiona a intimidade do casal de forma espantosa. As descrições expõem ao mesmo tempo detalhes provocativos e belos. Embora seja extenso, com mais de cinquenta páginas em único parágrafo, é praticamente impossível pausar a leitura, pois a prosa potente e o estilo da narrativa ditam o ritmo para a discussão frenética do casal. Transitando com velocidade entre diversos assuntos, a obra combina com maestria uma infinidade de ideias. O conflito que se segue é fabuloso, com insultos que vão do pessoal ao ideológico, onde colapsa da boca do protagonista a sua criação arquitetônica-metafórica.

Para compreender o livro e a profunda expressão artística que ele incorpora, é necessário aprofundar o problema da linguagem à própria obra. Não se trata do criador ou do destinatário, mas do seu poder para lançar a verdade. Embora aparentemente subjetiva, a voz narrativa serve como uma máscara que esconde o problema mais profundo do livro. Essa linguagem, que varia dependendo do meio, reflete metafisicamente o mundo, as emoções e as sensações humanas. Por meio da arquitetura da linguagem, a obra capta um momento da realidade que não difere de nenhuma outra experiência. A força da verdade exposta reside na capacidade da obra exteriorizar o seu eu interior, que a sociedade muitas vezes marginaliza, testemunhando assim o caráter irreconciliável da sua existência.

A obra não tem como finalidade a comunicação. Em vez disso, evolui por um meio de linguagem que rejeita a ideia de transmitir qualquer mensagem específica. Enquanto fenômeno de linguagem e obra de arte, Um copo de cólera é essencial e afirma a sua independência, primando por uma estrutura original que a diferencie das demais obras. Além disso, expõe um cenário inesquecível, ainda que esquecido por muitos escritores. Este cenário é a existência de uma linguagem distinta que estabelece uma ligação profunda entre a expressão poética no mundo e a linguagem da humanidade. O compromisso poético de Um copo de cólera para com essas duas linguagens não procura estabelecer um modelo ou equivalência, pois a linguagem poética não envolve diretamente finalidades práticas ou assuntos vivos. Em vez disso, simplesmente nomeia e capta a essência da sua própria existência.

Agarrando-nos às maravilhas que têm nomes, atravessamos Um copo de cólera como quem atravessa a névoa da existência, como quem atravessa o mundo à medida que as palavras partem. É um problema de linguagem. Em busca de alguma distração que nos proteja da compulsão da palavra, enredamo-nos na essência das folhas, inflamadas por corpos que declinam para o esquecimento, para o vazio, com destino a ninguém. Os ciclos dos corpos ganham forma e são revitalizados em línguas alternativas, adornadas com diferentes denominações. A tinta ressecada nos lábios da fera deixa um sabor acre. Ao ler Um copo de cólera – o sonho das águas –, transpiramos linguagem, arranjando a antologia da nossa raiva. Transborda, por fim, a palavra, ressoando a musicalidade silenciosa dos abismos. 

 A sua conclusão acena à imprevisibilidade. Um copo de cólera vai além de um simples delineamento prático de pontos geográficos para uma navegação segura. A expedição incorpora algo muito mais grandioso, e é preciso audácia e coragem para nos aventurarmos no território desconhecido da nossa existência. Para compreender a profundidade e a essência do seu rico vocabulário e para enfrentar a complexidade que acompanha a sua leitura, deve-se ler a obra lenta e atentamente, pois, embora breve, trata-se de um livro denso. É só por meio desse gesto que podemos compreender o profundo impacto de Um copo de cólera e prestar homenagem ao legado artístico de Raduan Nassar e às possibilidades incalculáveis ​​que se desenrolam sob a sua linguagem. É uma experiência literária verdadeiramente magnífica.

Durante a década de 1970, Raduan Nassar escreveu dois livros renomados. No entanto, a sua insatisfação com o mundo literário o levou a abandoná-lo. Após isso, mergulhou na vida rural, mudando-se para a sua fazenda. Depois de algum tempo, doou a sua propriedade para a universidade (UFSCAR). Aos 88 anos de vida, Raduan Nassar permanece avesso aos holofotes, nunca se acostumando com a atenção e com a popularidade que surgem em seu caminho.


confesso que em certos momentos viro um fascista, viro e sei que virei, mas você também vira fascista, exatamente como eu, só que você vira e não sabe que virou; essa é a única diferença, apenas essa; e você só não sabe que virou porque – sem ser propriamente uma novidade – não há nada que esteja mais em moda hoje em dia do que ser fascista em nome da razão.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Que o teu eco ressoe em ti



Sonhava-se com um novo alfabeto, com uma nova linguagem figurada em que fosse possível fixar e transmitir as novas vivências espirituais.


Ambientado no ano 2200, século XXIII, O jogo das contas de vidro (1943), de Hermann Hesse (1877-1962), se desenrola na sociedade de Castália, onde reside uma comunidade de intelectuais que abdicou da vida mundana. Fundindo as sabedorias ocidental e oriental, a obra guia os leitores a uma jornada surpreendente que se baseia nos ensinamentos de diversos sábios. 

A narrativa acompanha a vida de José Servo, que explora diferentes caminhos em sua busca do autoconhecimento. No cargo de Magister Ludi, que é o mestre do jogo das contas de vidro (ou o Jogo de Avelórios), ele embarca em uma viagem que desvenda o profundo significado da história, e isso o leva a questionar as estruturas da própria existência e, em última análise, acaba provocando uma grande mudança interior. O livro termina com a história de Tito, seu último discípulo, e a conclusão sombria, que nos causa profundas reflexões.

Em Castália – sociedade que se assemelha a uma comunidade monástica –, os intelectuais vivem isolados em uma cidade cuja estrutura é dividida em vários grupos, cada um dedicado ao estudo de uma disciplina específica. Há, no entanto, o grupo dos jogadores de Avelórios, que funciona como força unificadora, abrangendo todas as áreas do conhecimento. O verdadeiro significado do jogo reside na sua capacidade de integrar com perfeição os múltiplos campos do intelecto, permitindo, por exemplo, a experiência dos saberes matemáticos por meio de estruturas musicais.

No entanto, é crucial reconhecer que a apresentação do mundo castálico funciona apenas como pano de fundo da obra, pois a verdadeira essência do livro está na narrativa de José Servo, o habilidoso mestre do Jogo de Avelórios. Sua vida serve de reflexão para os leitores, levando-os a pensar sobre suas próprias vidas. Embora seja um homem sereno, o percurso de José Servo rumo à transcendência é marcado por momentos de incerteza, pois o protagonista faz da dúvida um catalisador da fé. 

Um aspecto fascinante do livro é como José Servo vivencia momentos de alegria e de tristeza ao longo da narrativa. Ao invés de o protagonista se concentrar na busca de sua felicidade, o seu caminho rumo à transcendência o leva a procurar a serenidade e a harmonia, que são menos vulneráveis ​​ao impacto da tristeza. O que mais nos intriga durante a leitura é que essas emoções não são alcançadas por meio da entrega aos prazeres, mas por meio do ato de contemplação de uma música, de um poema, da beleza da natureza ou da vastidão do universo. Nesse sentido, José Servo se realiza na contemplação da amizade, do amor e das artes.

O percurso do Magister e a sua insatisfação com os privilégios que observa é verdadeiramente notável. Ele é um personagem de grande complexidade, característica frequentemente encontrada nas obras de Hermann Hesse. No livro, o autor explora fortes amizades, como a entre José Servo e Fritz Tegularius, grande jogador de Avelórios. A relação que Servo cria com Plínio Designori oscila entre a amizade e o confronto ideológico e funciona como catalisador para as decisões transformadoras do personagem. Embora a narrativa se desenrole de forma lenta, ela é consistente.


O mundo estava cheio de devir, cheio de história, cheio de tentativas e de um começo eternamente novo. Talvez caótico, mas era a pátria onde nascem e o solo onde germinam todos os destinos, todos os enaltecimentos, todas as artes, toda a humanidade.


Sem ação, a obra sustenta mais um sentido de contemplação e de introspecção. Até mesmo os conflitos centrais são lutas internas do protagonista. Mesmo assim, a obra não deixa de criticar a sociedade utópica e aquela que vigorava em sua época. Enquanto Castália se abstém de interferências políticas no mundo, o livro denuncia os intelectuais do seu tempo pela sua falta de envolvimento político e critica aqueles que esquecem o quão importante é a história, a ilusão de liberdade que o liberalismo vende e a natureza opressiva que existe em regimes marcados pelo totalitarismo e pela hierarquização.

O trabalho literário deixado por José Servo é fabuloso. Mesmo depois de uma leitura longa, continua a ser um desafio mergulhar nos domínios metafísicos e envolver-se com as “Três Existências”. Essas narrativas cativam pela sua potência, seu fluxo rítmico e suas mudanças repentinas de circunstância. Nessas obras, vislumbramos José Servo como se a sua consciência se manifestasse a cada linha. É evidente que Hermann Hesse, no auge de sua maturidade, procurou criar contos que atestassem as suas afinidades com as crenças hindu.

O capítulo “O Conjurador de Chuva” explora a ideia de que, embora os primeiros humanos não possuíssem a sofisticação da racionalidade, os seus sentidos e a sua intuição eram altamente avançados. Investiga o significado do medo que eles sentiam em relação à natureza, aos elementos, aos animais e às doenças, e como isso contribuiu para o seu crescimento espiritual. Em contraste, na nossa era moderna marcada pelo excesso tecnológico, a humanidade perdeu de vista o propósito e o significado da vida.

“O Confessor” centra-se na segunda manifestação de José Servo, especificamente na forma do arrependido Josephus Famulus. Este capítulo investiga o tema do serviço altruísta, um princípio cristão fundamental que permeia toda a narrativa. Dion Pugil transmite sabedorias a Josefo Famulus, enfatizando a importância de não tentar converter pagãos satisfeitos, mas focar naqueles que são infelizes e que precisam de assistência. Pugil observa astutamente que, mais cedo ou mais tarde, a natureza passageira de sua felicidade os levará a buscar consolo em Deus.

“A Encarnação Hindu” enfatiza a prática da ioga, especificamente da disciplina seguida pelos iogues ascéticos. Aqui, o autor mergulha no reino da filosofia e da espiritualidade orientais, inspirando-se no taoísmo e no budismo, para apresentar uma narrativa cativante da vida de Dasa e um retrato vívido da natureza ilusória da existência, conhecida como maia.

O jogo das contas de vidro é uma ode ao indivíduo, enfatizando a importância da autodeterminação, do serviço e da busca por um espírito nobre. Aqueles que aspiram ao crescimento pessoal contribuem positivamente para o mundo ao seu redor. Por meio da vida de José Servo, assistimos a um percurso caracterizado por momentos de incerteza, mas também por momentos de profundo crescimento e iluminação. Assim como São Cristóvão, José dedicou-se a servir quem ocupava posições de poder, buscando transcender as próprias limitações e despertar para novas possibilidades. Nesse sentido, o livro investiga o conceito de uma aristocracia espiritual, que tem o poder de elevar um indivíduo comum a um nobre em uma única vida. 

As seções do livro se entrelaçam, e cada parte ilumina as outras. Este é um livro que necessita de um consumo lento, apreciando sua complexidade e beleza. O jogo das contas de vidro está longe de ser uma leitura simples e certamente é uma obra que não tem como objetivo entreter; em vez disso, Hermann Hesse investiga domínios mais profundos. Nesse sentido, a vida de José Servo espelha grandes transformações, e aquele que decidir enfrentar a obra não passará indiferente ao poderoso universo criado por Hermann Hesse, universo que é ao mesmo tempo sereno e harmônico, agressivo e caótico. 


E logo em seguida se despertava de novo, devia-se deixar penetrar de novo no coração as torrentes da vida, e nos olhos o terrível, belo e atroz fluxo de imagens sem fim, inelutável, até ao próximo desfalecer, até à próxima morte. A morte era talvez uma pausa, um curto e ínfimo repouso, o tempo de se retomar alento, mas depois tudo continuava, e éramos de novo uma das milhares de figuras na dança selvagem, embriagante e desesperada da vida. Ah! Não havia extinção, não havia fim.

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Onde o silêncio é mais assombroso que o estrondo



Esse jovem e insignificante estrangeiro, Brigge, terá de se sentar no quinto andar e escrever, dia e noite: ele terá de escrever, é assim que isso acaba.


Em Os cadernos de Malte Laurids Brigge (1910), do escritor Rainer Maria Rilke (1875-1926), os pensamentos afiados do protagonista Brigge, aliados a andamentos musicais, estruturam um livro plural e complexo. A obra é uma construção burilada a partir de uma linguagem onde as palavras, como força de criação, realçam as potências da prosa e da poesia. Trabalhando a solidão na cidade de Paris, repensando aspectos de quando criança, refinando o silêncio e refletindo sobre familiares misteriosos, Rainer Maria Rilke incorpora à sua escrita traços de autobiografia. No princípio é um pouco confuso diferenciar os aspectos de uma escrita cheia de símbolos que oscila entre o sonho e a música, pois Brigge é um ser consciente que está constantemente em movimento e que nunca repousa, mesmo quando se silencia. 

Os cadernos de Malte Laurids Brigge ergue pelo próprio sopro um mundo existente antes da linguagem que o chama. Nesse espaço, a atenção de Brigge se detém no mais incógnito dos mundos, e a narrativa busca desvendar o enigma do real, mas sempre impregnado pelo dúbio e pelo obscuro. Não se trata, portanto, de um mundo cadenciado e equilibrado, mas de um mundo criado em códigos, infinito em sua transitoriedade. O leitor – que se depara com uma obra tão densa e suave como um universo que já existe antes mesmo do olhar, mas que o solicita com atenção para ser revelado – se perde na obra como alguém que se perde num labirinto de mistérios, tomado pela curiosidade e pela tensão. De fato, ninguém explora com facilidade os horizontes de Rilke.


Pois em sua solidão ele amou e amou; a cada vez ele amou com a dissipação de toda a sua natureza e com um medo indizível pela liberdade do outro.


Se o que pulsa na obra é o cansaço sensível das palavras, que da sua potência imagética extingue todas as maneiras de senti-las, compreende-se que não há qualquer universo antes da obra, apenas ela durante o seu sopro. Ou seja, o que há e o que nunca deixa de haver acenam sempre o seu último fôlego. Há sensações demais. Enquanto a noite se ergue, tudo o que vive sob a luz vive de instabilidade, buscando nos tocar – e esse primeiro toque ainda acontece quando a consciência da obra atravessa a inconsciência do leitor.

Lá ou cá, Os cadernos de Malte Laurids Brigge evidencia o impacto da sua presença e a sutileza a cada linha. A obra segue um fluxo sem se assentar sobre um tema específico. Nessa cadência, aborda aspectos inerentes a Brigge, que discorre sobre a infância, a vida, o amor e a morte – tudo isso trabalhado sob o rigor da poesia e da filosofia, fato que confere ainda mais grandiosidade à obra. O ponto de confluência de todos os desdobramentos é a própria linguagem que, sempre revolucionária, insufla vida numa paisagem existente antes do homem e do corpo. E, nesse cenário de sensações articuladas pela linguagem, que não consegue mais modelar qualquer resquício de afeto, é a extrema solidão que conduz Brigge pelas ruas de Paris. 

Em solo parisiense, Brigge é um principiante em suas próprias circunstâncias. Tudo para ele é complexo porque tudo transborda novidade. Ele vive uma vida cheia de acontecimentos, num mundo que passou por grandes mudanças. Sendo influenciado por diversos aspectos, cria na alma uma ideia completamente distante de tudo. É preciso dizer que Brigge também é tomado pelas seduções que Paris suscita, e isso transforma a maneira como ele vê o mundo e a vida. Paris é uma cidade cheia de seduções. No aniquilamento das vozes que se acumulam em todos os cantos da cidade, todas as sensações que a obra sustenta são arquitetadas pelo abismo, sem qualquer proteção ou blindagem elucidativa prévia. 


Pois sabia que lá fora as coisas prosseguiam com a mesma indiferença de sempre, que também lá fora não havia nada a não ser minha solidão. A solidão à qual me resolvera e cujo tamanho não guardava mais qualquer proporção com o meu coração.


Nota-se a cada sentença que Brigge é um Hamlet que luta com os fantasmas de outro tempo numa madrugada sem amanhecer. Abismo fora das fronteiras lógicas, a obra plasma um pensamento que procura o labirinto oculto de Dédalo. Ao fazer isso, revela a sua grande força, que é a de sustentar o instinto de morte que paira a cada frase. Revela-se, mas digo que nunca por completo, pois suas reflexões sempre se fragmentam – e cada reflexão é um encontro improvável, um vitral sinfônico. Serenos e graves, os sons se encontram e partem, percorrendo brandos e bravos as chagas mais íntimas, por cima dos abismos da idade e da fragilidade, transformando, dentro da noite, todos os cantos do espaço em algo suntuoso. Assim, a cidade, as ruas, as artes, o hospital, a morte, as folhas de papéis – em suas narrações prováveis – alinhavam, em última instância, os leitores para sobreviverem a si mesmos. 

Obra sem enredo predefinido, Os cadernos de Malte Laurids Brigge busca compreender a vida em sua essência, conduzindo o leitor em uma jornada onde os desdobramentos são pensados e sentidos a partir de uma visão repleta de singularidade e subjetividade. Assim, a obra oferece uma reflexão profunda que combina poesia e ação. O resultado é uma narrativa que dissipa tudo, emana abstrações, fabulação de um sonho qualquer, sendo mãos que avançam no escuro sem deixar reflexos, reflexão que se desdobra, estranhando o porquê de desdobrar os seus estremecimentos.

Quando recitamos uma leitura, fazemos valer a sua maior potência, pois alocamos no espaço aquilo que antes morava nos olhos. O que nos resta depois é navegar à orla dos sentidos, testemunhando o que não pode ser testemunhado, nunca esquecendo que os destroços do naufrágio sempre fluem, refluem, girando, incessantemente. E assim é a escrita de todos, a arte de todos, porque, sendo de ninguém, nunca se apresenta, mas sempre revela as suas verdades ocultas, muitas vezes obscurecidas mesmo quando vistas de diferentes perspectivas. Mas, se ainda insistimos na leitura, é porque a obra acena para algo além de nós: arte. Os cadernos de Malte Laurids Brigge solicita atenção, pois é o destino imobilizante que fragmenta, que gera grande cansaço, deixando fugir os cacos do que é e oscilando quando se sopra a linguagem que o habita. Leiamos, portanto.


É para cá, então, que as pessoas vêm para viver; eu diria, antes, que aqui se morre.


segunda-feira, 22 de abril de 2024

A vida, a vida recomeçando sempre

 

No escuro o velho sentia a manhã que vinha, e remando ouvia o som trêmulo dos peixes-voadores a sair da água e o silvo que as asas tesas faziam quando eles cortavam as trevas.


Ernest Hemingway (1899-1961), renomado escritor que recebeu o Pulitzer em 1953 e o Nobel em 1954, é o autor da obra-prima O velho e o mar (1952). O livro narra a extraordinária jornada de Santiago, um velho pescador, durante a sua expedição mais notável no oceano.

Diante de circunstâncias desafiadoras, Santiago, um pescador habilidoso, se vê às voltas com uma prolongada onda de infortúnios – por mais de oitenta dias, a sorte o escapou, deixando-o à míngua sem qualquer peixe. No entanto, com o auxílio do seu aprendiz, o jovem Manolin, Santiago prepara os seus escassos equipamentos para aquela que será a jornada mais significativa da sua vida.

O velho e o mar embarca o leitor na viagem solitária de Santiago, narrando sua heróica busca para capturar o maior peixe que já encontrou e reconquistar o respeito de seus colegas pescadores. Capturando a essência das lutas, das amizades, dos triunfos e dos reveses da vida – tanto em águas abertas quanto nos campos mais amplos da existência –, a obra se estende para além da superfície e investiga necessidades humanas fundamentais, apresentando uma narrativa carregada de emoções que se aprofundam na introspecção da personagem.

Apesar de enfrentar imensos desafios, vivendo em profunda solidão, Santiago mantém-se inabalável e busca abraçar a felicidade que habita o coração dos virtuosos. Encantador, O velho e o mar é uma viagem através das reflexões de um indivíduo como outro qualquer, mas incrivelmente resiliente. É o simples com potência. Em poucas páginas, notamos como a precisão linguística de Hemingway brilha ao retratar a bravura, a paciência e a superação de Santiago.

O livro transcende a sua premissa inicial de uma pescaria e mergulha na complexa luta interna de um indivíduo solitário e despretensioso. Em termos de narrativa, o autor evoca habilmente múltiplas emoções dentro de cada cena. Assim, transportando o leitor para um reino mítico, onde uma batalha extraordinária se desenrola, mostrando sutilmente a força indomável da determinação e bravura humanas, a obra abre vários caminhos interpretativos.

Santiago dedica-se ao ofício da pesca diariamente, levantando-se cedo e aventurando-se no mar em busca de sustento. Esta perspectiva ilustra como a pescaria é parte integrante do destino do protagonista. É o mar quem lhe proporciona o alimento, e são os peixes que se sacrificam para garantir a sua sobrevivência. Sendo assim, é sempre com grande admiração e reverência que Santiago fala da natureza, do oceano e dos animais. Ele nutre profundo respeito pela fonte que sustenta a sua existência.

O velho e o mar realça a coragem necessária para sobreviver e navegar pela vida até o último instante. Embora a sua viagem seja um embate com o incógnito, onde a imensidão marítima o lembre constantemente a sua insignificância e a sua vulnerabilidade, é justamente no mar que Santiago descobre a sua própria força ao confrontar os demônios que o assombram. A solidão da jornada representa um submergir nas profundezas do próprio inconsciente, transformando o mar em uma metáfora para a autorreflexão, pois o tempo que passa nele também representa uma viagem para dentro de si.

Aquele que deseja obter algo do mar deve abordá-lo com reverência e respeito, como se abordaria uma mãe. Santiago lembra do mar como uma mulher cheia de feminilidade e traça um paralelo entre a influência da lua no mar e o seu impacto nas mulheres. Para ele, o mar é mãe nutridora, fonte de sustento e de vida. Essa sua reverência, que reflete o respeito que ele tem pela essência feminina de sua própria mãe, é um traço alegórico comovente e destaca a sua subordinação a algo que o transcende. Assim como sua mãe o deu à luz e lhe deu de comer, a imensidão marítima tem o poder de gerar e sustentar todas as formas de vida.

À medida que Santiago vivencia os efeitos do envelhecimento, Manolin aprende com ele e gradualmente vai tomando o seu lugar para dar continuidade ao trabalho iniciado. Esse é um paralelo que a obra desenha e que também pode ser evidenciado nos sonhos de Santiago. O velho sonha constantemente com leões, que são ligados a figuras de pais e mestres e são reconhecidos por serem animais sábios, justos e corajosos. Nesse sentido, Santiago desempenha a função de orientador de Manolin, ensinando-lhe sobre a vida e suas circunstâncias.

Reconhecendo a sua limitação e compreendendo que necessitava da sabedoria do velho para enfrentar a vastidão marítima, ele se posiciona como um discípulo, pois, embora tivesse a vitalidade da juventude, a sua falta de sabedoria o tornava vulnerável perante às provações da vida. Manolin considerava Santiago uma pessoa extraordinária, compreendendo bem que o processo de envelhecimento, embora trouxesse a fragilidade física, também trazia no seu bojo uma antologia de experiências. Nesse sentido, Manolin sempre reverenciou as marcas que Santiago levava consigo, pois o seu mentor personifica a ideia de que precisamos cultivar a coragem de perseverar.

Não é todo dia que se encontra um livro tão emocionante. O velho e o mar é uma obra de arte elaborada com uma trama simples, mas grave, que requer tempo para ser totalmente apreciada. Nela, exploramos as limitações e as vulnerabilidades humanas, a conquista do conhecimento adquirido ao longo do tempo, os valores da caridade, do respeito e da humildade com os nossos antecessores. De certo, pertence à categoria das pinturas excepcionais que nos cativam profundamente, criando uma delicada ligação entre o texto e as nossas emoções.

Por fim, compreendemos que a vida segue o ciclo de semeadura e colheita, e O velho e o mar nos ensina que essa construção é diária, onde iniciamos primeiro como novatos e terminamos como especialistas. Para atingir esse nível de domínio, porém, é fundamental cultivar a importância do aprendizado empático e humilde.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

O sopro prateado: o impulso fantasma



Senta-te sultanicamente entre as luas de Saturno, e imagina um solitário homem abstrato; e ele te parecerá um prodígio, uma grandeza, um sofrimento.


Quando nos aprofundamos em algum livro, certamente ele perturbará o equilíbrio da nossa bússola interna. As vantagens que uma leitura potente nos confere sempre são capazes de nos surpreender. A capacidade de embarcar em grandes literaturas é um privilégio, e aquele que se dedica a esta expedição tão solitária invariavelmente é um sujeito que respeita os seus semelhantes. Cada escritor nos revela como o universo pode ser visto a partir de outros ângulos.

Em 1820, após ser golpeado por um cachalote, o navio baleeiro “Essex”, que era comandado pelo capitão George Pollard, naufragou em alto mar, e toda a tripulação ficou à deriva por três meses. Sem qualquer tipo de suprimento, os homens tiveram de recorrer ao canibalismo para sobreviver. A obra-prima Moby Dick (1851), do autor norte-americano Herman Melville (1819-1891), é um livro influenciado não só pelas experiências do escritor – que também foi marujo em navios baleeiros e mercantes –, mas também por histórias que marcaram épocas, como a mencionada, que também inspirou Nathaniel Philbrick (1956-) a escrever o livro No coração do mar (2000).

Após ver as suas finanças em declínio, O jovem narrador Ismael decide ir à cidade de Nantucket, localizada em Massachusetts, para embarcar em um navio baleeiro, mesmo tendo experiência apenas com a marinha mercante. Naquela época, a caça às baleias era abundante e rendia bons lucros. Antes de embarcar no “Pequod”, baleeiro cujo capitão era o autoritário e enigmático Ahab, que teve a sua perna arrancada por um cachalote, Ismael inicia uma grande amizade com o arpoador Queequeg. A bordo do “Pequod”, a tripulação foi apresentada a Starbuck, Flask, Stubb, pilotos responsáveis pelo comando dos botes do navio. Seus arpoadores eram Queequeg, Daggoo e Tashtego. Sem pendências, o “Pequod” estava pronto para seguir sua jornada de três anos em alto mar.

O real motivo da viagem vem à tona. Movido pela vingança, o capitão Ahab surge no convés após dias sumido de sua tripulação e diz que o principal objetivo da expedição é, na verdade, caçar a baleia branca Moby Dick, a besta marinha responsável por desgraçar vários navios e por arrancar a sua perna. Com esta ideia obsessiva em mente, Ahab persegue os rastros da baleia que o mutilou e que continua nadando livremente.


[...] com as cartas de todos os quatro oceanos diante de si, Ahab tecia um labirinto de correntes e sorvedouros, almejando uma realização mais segura daquele pensamento monomaníaco de sua alma.


Antes de encontrarem Moby Dick no oceano Pacífico, a expedição atravessa rotas sinuosas dos oceanos Índico e Atlântico. Assim, somos atirados em um maelstrom narrativo que desbrava os cantos do mundo. Se a narrativa começa carmesim, evocando imagens de fúria, fervor e sangue, à medida que a história se desenrola, o tom muda gradualmente, imbuindo a atmosfera da expedição com uma sensação de melancolia. Ismael retrata vividamente o terror que experimenta ao testemunhar a transformação de seu capitão na perseguição incansável de seu inimigo.

Para um escritor, a loucura serve como uma purificação da essência. Alguns artistas alcançaram com sucesso este estado e hoje ocupam posições relevantes em nossa sociedade. Poderíamos argumentar que em geral os escritores travam diálogos com a loucura e se esforçam para abraçá-la, naufragando ao canto das sereias. No âmbito da narrativa de Melville, a ausência de qualquer possibilidade de redenção para Ahab faz com que persista apenas o ódio. Embora haja uma presença de heroísmo trágico no capitão, ela é ofuscada pela dura realidade da história. O mote vingativo que Ahab sustenta ao longo de toda a narrativa é sem romantismo e calma.

A tarefa de compreender a simbologia da baleia cabe ao leitor. Moby Dick, quando se sente coagido, ataca de forma estratégica e inteligente, mas, no geral, é uma baleia que apenas segue o seu fluxo, ignorando aqueles que se aproximam dela, levando ao longo de seu corpo as cicatrizes e os arpões de todos os marinheiros que nunca conseguiram subjugá-la. As opiniões de Starbuck e Ahab não se encontram, pois, segundo este, Moby Dick é um assassino que age com perspicácia e astúcia. 


[...] e o navio silencioso, como que tripulado por marinheiros de cera pintada, prosseguiu, dia após dia, através da loucura e alegria veloz das ondas demoníacas. De noite, a mesma mudez da humanidade diante dos gritos do oceano prevalecia; ainda em silêncio, os homens balançavam nas bolinas; ainda sem palavras, Ahab enfrentou a tormenta.


É o animal que detém o domínio. Parece-nos que existe uma batalha constante entre humanos e animais, onde o intelecto se revela impotente contra a força instintiva. Enquanto a obsessão continua a crescer, o vibrante mundo marinho gradualmente perece. 

Moby Dick é uma história que exige ser contada em voz alta. Envolve cansar-se da cadência da linguagem e deter o olhar na bruma de cada página. Este romance marca o cenário literário de forma ímpar, e um leitor atento pode notar aspectos mais densos na obra. Moby Dick aprofunda pontos importantes, como as questões de raça, de hierarquia dos tripulantes, de exploração econômica com a caça às baleias (para a extração de óleo), entre outras questões de relevância mundial. O navio, aliás, opera como um microcosmo do mundo. Aquele que mergulhar na obra sentirá, na ponta dos dedos, o cheiro persistente de óleo písceo e inalará a cada frase a brisa salgada do oceano.

Joia redescoberta no século XX por escritores influentes, Moby Dick é uma aventura épica que rompe com épocas e parâmetros. Misturando impasses filosóficos, relatos científicos, poesia, sermões religiosos e diálogos à altura de um teatro shakespereano, sob a destreza e a precisão de Melville, Moby Dick é uma aventura sublime com destino à imensidão marítima e às profundezas do ser. Ao contar a obsessiva caçada de Ahab por Moby Dick, o livro narra uma metáfora espantosa da condição humana, transformando-se em um símbolo daqueles que caem nas profundezas insondáveis da loucura e da vingança. De certo, um grande feito da literatura mundial.


No instante seguinte, o pesado nó corredio da ponta final da linha voou da selha vazia, derrubou um remador e, batendo no mar, desapareceu nas profundezas.